Resenha: A hora dos ruminantes

A pacata e misteriosa cidade de Manarairema

Publicado por G. T. Tessmer em 01 de outubro de 2022

Manarairema é um vilarejo pacato, bucólico e rural. Este lugar imaginário, perdido em algum cantinho na imensidão do Brasil, serve de pano de fundo para uma história inusitada e fantástica. Fantástica no sentido literal, porque o romance de José J. Veiga possui elementos que o caracterizam como realismo fantástico. A obra é de fato alegórica, onde bizarros acontecimentos que ocorrem no localidade possuem um ar de mistério e ameaça, se expressam através de simbolismos velados.

A pequena cidade, habituada com a simplicidade corriqueira de um estilo de vida interiorano, é surpreendida por três invasões consecutivas. Primeiro, cães em matilha surgem no vilarejo causando perplexidade e estranhamento. Os animais invadem casas e ameaçam os moradores, trazendo pânico e rompendo a tranquilidade da vida dos moradores. Misteriosamente, assim como surgiram, desapareceram sem deixar vestígios. Depois, outra invasão, ainda mais ameaçadora ocorre da mesma forma inesperada. Centenas de bois aparecem na cidade forçando as pessoas a se trancarem dentro das casas para se proteger. A cidade fica totalmente encurralada, mantendo os moradores prisioneiros em suas próprias residências. E novamente, sem explicação alguma, os animais desaparecem.

Estes dois eventos servem como introdução para algo ainda mais intrigante e ameaçador. Um acampamento surge do outro lado do rio, é visível logo pela manhã. São os homens da tapera. O acontecimento causa assombro e curiosidade. Os invasores, que nunca se apresentaram, modificam o cotidiano do lugar e a dinâmica da cidade. A população se comporta de forma passiva diante da esdrúxula ocupação, mesmo que contrariada e incrédula.

Neste momento, a comparação se torna evidente. A ameaça, silenciosa e coercitiva dos forasteiros, nem sempre evidente ou explícita, mas opressora e inexplicável, é a expressão do autoritarismo.

(...) aqueles lá acamparam em linha, duas fileiras, medidas, deixando uma espécie de largo no meio. (...) enquanto os homens andavam ativos carregando volumes, abrindo volumes, se consultando, sem tomar conhecimento da cidade ali perto. Seriam engenheiros? Mineradores? Gente do governo?

 Os invasores se comportam de maneira semelhante aos militares, com acampamentos estruturados que surgiram da noite pro dia. A alegoria parece clara, onde a ameaça é simbólica e obscura, nebulosa e incerta.

Embora o próprio autor tenha negado qualquer intenção de abordar o tema da ditadura militar, o texto e os diferentes elementos da narrativa indicam justamente o oposto. Mas novamente, a mensagem implícita no livro é velada, simbólica e não evidente. O texto, apesar de breve, possui o enredo repleto de fatos enigmáticos. Entre os principais já abordados, há outros detalhes esquisitos, como uma máquina enorme de funcionamento desconhecido que chega na cidade por erro postal, avistamento de luzes no céu e assim por diante.

A hora dos ruminantes é um obra criativa e muito original. A leitura é agradável e rápida, mas sem dúvida alguma, exige atenção, para não deixar passar em branco as diferentes nuances inseridas na prosa.

José J. Veiga
José J. Veiga - fonte: Acervo Estadão

José J. Veiga, nasceu em Corumbá de Goiás, no dia 2 de fevereiro de 1915 e faleceu no dia 19 de setembro de 1999, aos 84 anos, no Rio de Janeiro. Em 1997, foi homenageado com o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras.

"Escrevo para conhecer melhor o mundo e as pessoas. Quem prestar atenção verá que os meus livros são indagativos, não explicativos. Isso faz deles um jogo ou um brinquedo entre autor e leitor; ambos indagando, juntos ou não, e descobrindo – ou não. Os meus textos são um exercício, ou uma aventura, ou um passeio intelectual. Eles não “acabam” no sentido tradicional, e nesse não acabar é que entra a colaboração do leitor. Mais tarde encontrei esta frase num livro de Julien Gracq: “Escrevo para saber o que vou encontrar”. Fiquei feliz."
José J. Veiga, em "Por que escrevo?". (O escritor por ele mesmo). São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996, f. 2.