Kafka à beira-mar

A lógica onírica de Haruki Murakami

Publicado por G. T. Tessmer em 14 de setembro de 2023

Kafka à beira-mar possui duas tramas distintas que se desenvolvem paralelamente. De um lado, Kafka, um garoto de 15 anos de idade que fugiu da casa do pai em busca da mãe e da irmã, do outro, Nakata, um velho que não sabe ler nem escrever, mas que possui habilidades muito  estranhas. Kafka vive um terrível complexo de Édipo. Não tem certeza se matou o pai e desconfia que a Srta. Saeki, uma mulher no qual sente uma misteriosa atração, pode ser sua mãe. Com a ajuda de Oshima, ele consegue abrigo provisório em uma biblioteca particular. Foi ali que conheceu a Srta. Saeki. Surge uma relação entre os dois, mas é impossível dizer ao certo o que está acontecendo. É algo similar a um sonho desperto, a dualidade entre consciente e inconsciente. A realidade fragmentada em múltiplas instâncias paralelas, uma peculiaridade do trabalho de Murakami.

Haruki Murakami

Haruki Murakami

Intercalando capítulos, outra história se desenvolve, protagonizada pela figura enigmática de Nakata, um velho simples, sem instrução e analfabeto. Nakata sofreu um trauma quando criança que lhe causou graves sequelas. O livro relata pormenores, mas não de forma clara. Um evento misterioso é abordado e dúvidas surgem sobre a questão. Este senhor possui a impressionante habilidade de se comunicar com os felinos. E isso significa que ele pode conversar com os gatos, literalmente. Além do mais, coisas absurdas acontecem na sua presença, como chover peixes, por exemplo. Ele foi rejeitada pela família e pela sociedade. Vive com o subsídio do governo, uma aposentadoria por invalidez, mas ganha um dinheiro extra resgatando gatos perdidos da vizinhança. Em determinado momento, Nakata se envolve em um assassinato. A vítima é um homem terrível conhecido como Johnnie Walker. Sem entrar em detalhes para não revelar a história, pode-se dizer apenas que este é o momento mais cruel e brutal de todo o livro. Walker é uma pessoa má.

Este assassinato é o ponto em comum que une as histórias de Kafka e Nakata. Isso porque o pai de Kafka também foi assassinado. A vítima não é a mesma pessoa ou talvez seja a mesma pessoa em uma realidade alternativa. É difícil explicar, principalmente tentando não revelar detalhes da narrativa. De qualquer maneira, Murakami cria constantemente cenas e cenários alucinatórios. Coisas que só podem existir em sonhos, onde as leis e regras seguem princípios distintos.

No livro inteiro, o texto é repleto de imagens e eventos que resistem à explicação lógica. Ao mesmo tempo, a cada página, um simbolismo pode ser evocado, e você leitor, talvez nem sequer perceba. Assim é a metáfora da praia, o limite entre dois mundos, consciente e inconsciente.  Assim também é a pedra que Hoshino encontra para Nakata. A pedra que abre o caminho para uma realidade alternativa. São muitos elementos simbólicos. Outro exemplo metafórico ocorre no diálogo entre Kafka e Oshima. Oshima tenta prevenir Kafka a não se perder na floresta, uma densa floresta na província de Kōchi.

— Existe um mundo paralelo, contíguo a este em que vivemos. Você é capaz de entrar nele até um certo ponto. É também capaz de voltar de lá são e salvo. Contanto que esteja atento. Mas uma vez transposto certo ponto, nunca mais será capaz de voltar. Não vai mais achar o caminho. É um labirinto. Sabe de onde surgiu a ideia do labirinto?
— Por tudo que nos foi dado a conhecer, a ideia foi inicialmente concebida pelos habitantes da antiga Mesopotâmia. Eles costumavam extrair o intestino dos animais — pode ser que também de seres humanos, às vezes — e prever o futuro de acordo com sua forma. Além de tudo, louvavam a complexidade dessa forma. Pois o intestino é o modelo do labirinto. Ou seja, o arquétipo do labirinto está dentro do nosso próprio corpo. E interage com formas labirínticas externas.

 Concluindo o pensamento, Oshima compara o mundo externo e o mundo interno. O que existe externamente é uma projeção do que existe dentro de si e vice versa. Ao entrar no labirinto da floresta, também penetra-se no labirinto interior, e isso, quase sempre, é muito perigoso.

O surrealismo e a interconexão de realidades paralelas é algo inconfundível no trabalho de Murakami. Tudo pode acontecer nesse universo ficcional. A fantasia e a realidade se mesclam de maneira indubitavelmente única. É a assinatura própria do autor. Não há como compreender Kafka à beira-mar de forma racional. O livro fornece inúmeros questionamentos e nenhuma resposta. Após a leitura, é possível vislumbrar possibilidades. Serão interpretações individuais. Dificilmente haverá um consenso sobre todos os aspectos misteriosos que o livro evoca. Essa característica faz a obra de Murakami ser diferente, inconfundível, eu diria.

Murakami explica seu processo de escrita como um processo análogo ao sonho: “Escrever um romance me permite sonhar intencionalmente enquanto ainda estou acordado. Posso continuar hoje o sonho de ontem, algo que normalmente não se consegue fazer no dia a dia. É também uma forma de descer profundamente à minha própria consciência. Então, embora eu veja isso como um sonho, não é fantasia. Para mim o sonho é muito real.”