Mil novecentos e oitenta e quatro

George Orwell, Aldous Huxley e as distopias do século XX

Publicado por G. T. Tessmer em 13 de novembro de 2022

Uma peculiaridade histórica curiosa do mundo literário é a relação entre Aldous Huxley e George Orwell. Os autores, dois gigantes literários do século vinte, se conheceram na escola britânica de Eton College. Na época, Huxley ministrava um curso de francês e Orwell foi seu aluno na disciplina. Sabe-se que Huxley sofreu com uma visão limitada desde jovem, acometido por uma doença que quase o cegou. Enquanto alguns alunos se aproveitavam e zombavam da fraca visão de Huxley, Orwell supostamente o defendeu e se aproximou do professor.

Na época do lançamento do famigerado 1984 (no ano de 1949), George Orwell pediu para seus editores enviarem uma cópia do livro para seu antigo professor. Meses depois, ele recebeu uma carta de resposta. Huxley já havia publicado Admirável Mundo Novo, dezessete anos antes, em 1932. Ambos livros relatam a realidade utópica/distópica de um futuro bizarro, no entanto, os livros possuem uma concepção completamente diferente. Na carta que Orwell recebeu de seu antigo professor de francês, Huxley comenta a obra de seu aluno: 

(...) Concordando com tudo o que a crítica escreveu sobre isso, eu não preciso te dizer, mais uma vez, o quão bom e profundamente importante o livro é. No lugar, posso falar sobre o que o livro aborda, - a revolução definitiva? as primeiras pistas de uma filosofia da revolução definitiva? - a revolução que está além da política e da economia, que aponta para a subversão total da psicologia e fisiologia do indivíduo - que podem ser encontradas em Marquês de Sade, que se considerava o continuador, o consumador de Robespierre e Babeuf. A filosofia da minoria dominante em 1984 é de um sadismo que foi levado à sua conclusão lógica, indo além do sexo e negando-o. (...)

Mas também expressa dúvida sobre a possibilidade de uma distopia brutal e inexorável conforme descrita em 1984. E neste aspecto defende a visão de sua própria obra: 

(...) Se a política do "boot-on-the-face" realmente pode continuar indefinidamente me parece duvidoso. Minha crença é de que a oligarquia dirigente irá achar formas menos árduas e perdulárias de governar e de satisfazer a sua cobiça por poder, e estas formas irão se assemelhar àquelas que eu descrevo em Admirável Mundo Novo. Em outras palavras, eu sinto que o pesadelo de 1984 está destinado a ser modulado ao pesadelo de um mundo mais semelhante ao que eu imaginei em Admirável Mundo Novo. A mudança surgirá como resultado de uma necessidade sentida [pelo governo] para o aumento da eficiência. Enquanto isso, claro, pode haver uma guerra atômica e em maior escala biológica - caso em que teremos pesadelos de tipos diferentes e inimagináveis. (...)

Em 1940, nove anos antes da publicação de 1984, Orwell havia escrito que Admirável Mundo Novo era "uma boa caricatura da utopia hedonista" e que "não tinha relação com o futuro real", que ele imaginava como "algo mais parecido com a Inquisição espanhola".

Sem dúvida alguma, a visão de George Orwell é brutal e opressora e distancia-se completamente da versão ficional proposta por Huxley. O mundo de 1984 é um mundo onde não existe individualidade. É um mundo onde até mesmo os pensamentos são vigiados. É o exemplo exacerbado e extremo de um regime fascista, ditatorial e totalitarista. Huxley, no entanto, percebe de forma diferente. Ele acredita que a força bruta será substituída por formas mais eficientes de controle. Um controle que não se manifesta diretamente como opositor, mas que de forma velada perpetua a manipulação através da distração e alienação coletiva.

George Orwell

George Orwell e sua máquina de escrever

Orwell temia que os livros fossem banidos. Huxley, por sua vez, temia que não haveria razão para proibir os livros, pois ninguém mais teria interesse em lê-los. Orwell acreditava no controle e privação das informações, onde a verdade seria escondida do público. Huxley imaginou um futuro onde a quantidade de informações obfuscaria a verdade, afogada em um mar de irrelevância. E neste contexto, o público estaria reduzido à passividade e ao egoísmo. Orwell temia que nos tornássemos uma cultura cativa. Huxley temia que no tornássemos uma cultura trivial e supérflua.

Há uma grande diferença nas perspectivas de controle das massas propostas nas duas obras. De certa forma, é possível perceber um reflexo de realidade em ambas distopias ficionais. O marketing, a sociedade de consumo, o entretenimento barato são exemplos que se aproximam da visão de Huxley em Admirável Mundo Novo. Seria de certa forma, uma versão atualizada da política pão e circo (Panem et circenses), onde a aristocracia romana mantinha a plebe indiferente e desinteressada em política. O pão, a espórtula (doação em dinheiro) e o entretenimento, eram ferramentas de contenção das massas, evitando possíveis revoltas da população. Seria o refinamento deste conceito, adaptado para um futuro utópico que está na obra de Huxley? Talvez. No entanto, sempre que há uma ruptura do status quo, sempre que ocorre uma desestabilização da normalidade, um movimento eufórico coletivo dissonante e caótico, é a força bruta que fala mais alto. Nestas situações, o poder burocrático e simbólico dos contratos é substituído pela coerção da força física. Sempre foi assim ao longo da história da humanidade. Quem controla e detém o poder é quem faz sobrevaler sua capacidade de dominação e controle. Os instrumentos se modificam, mas possuem sempre o mesmo propósito. Lanças, espadas e flechas são substituídas por pólvora, rifles e canhões que por sua vez são substituídos por mísseis, armas químicas, biológicas ou nucleares.

A força coercitiva é sempre a fronteira última do controle e submissão. Neste aspecto, Orwell é assertivo em sua perspectiva ficcional. E neste aspecto também, 1984 é profundamente mais assustador que Admirável Mundo Novo, porque expõem de forma explícita a opressão e a perda de todos direitos individuais. Mil novecentos e oitenta e quatro é praticamente um manual para fascistas.

Sob a égide da figura do Grande Irmão, a população é aterrorizada. O estado controla a propaganda e mantém a lavagem cerebral da população. O regime autoritário do partido controla a mídia de massa, altera dados históricos, manipula o passado e distorce os fatos. A população está sob vigília constante. O Partido fiscaliza o comportamento, repreende e pune qualquer atitude suspeita, qualquer desvio de conduta. O Grande Irmão, controla todos aspectos da vida das pessoas. Neste mundo opressor, qualquer cidadão pode ser punido por ideias rebeldes ou pensamento não alinhado ao Partido. Os criminosos são encaminhados para a temida sala 101 para receberem a punição. 

George Orwell, cujo nome de nascimento é na verdade Eric Blair, construiu um livro de impacto, de sinalização, denúncia e vigilância. 

A máxima do Partido: Guerra é Paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força.

A novela de Orwell possui um papel político e uma relevância absurda nos tempos atuais, 73 anos após sua publicação. Quase um século! A obra destaca a importância de resistir ao controle de massa e à opressão.