Sobre os ossos dos mortos

Uma fábula contemporânea subversiva

Publicado por G. T. Tessmer em 15 de setembro de 2022

Resenha: Sobre os ossos dos mortos

A personagem Janina Dusheiko (Duszejko, em polonês) não é uma senhora idosa comum. Mora sozinha e não compartilha o estereótipo de uma típica vovó, que cozinha, faz bolo e chá para os netos. Engenheira aposentada, construtora de pontes, trabalhou como professora de inglês para crianças. Possui profunda admiração pela obra de Willian Blake e junto com seu amigo, um jovem com idade para ser seu filho (ou neto), dedica-se a traduzir poesias do autor para o polonês.

Dusheiko também é astróloga. E essa é uma característica marcante de sua personalidade. Mas não uma astróloga medíocre, dessas que falam de horóscopo. Ela possui um livro de  efemérides, uma enorme tabela astronômica com a posição relativa dos astros em intervalos de tempo regulares. Orgulha-se de calcular o mapa natal das pessoas fazendo as contas na mão, antes de existirem softwares específicos para realizar este trabalho. 

Outra curiosidade é a mania de apelidar as pessoas. Assim, o vizinho é o Esquisito, a vizinha é a Acinzentada. Tem o pé grande, o policial Capa Negra e assim por diante.

Janina possui forte conexão com a natureza e profunda compaixão pelos animais. Crítica enfática dos caçadores, não se cansa de fazer denúncias na delegacia local, um remoto vilarejo polonês, próximo à fronteira com a República Tcheca. Constantemente ela se ocupa em sabotar as armadilhas que encontra para proteger os animais silvestres. Esta característica da protagonista narradora, no papel de protetora da fauna, estabelece o tom do livro. Uma mulher que luta contra injustiças, contra a ganância e a corrupção. E acima de tudo, contra a caça ilegal de animais silvestres. É neste contexto que ela enfrentará a hegemonia masculina que a observa com desdém. Será tratada como louca inofensiva e será mal vista por todos, ou quase todos. Ela possue alguns amigos, pessoas no qual pode confiar, mas a maioria dos residentes locais frequentam o clube de caça. Também existem políticos e policiais corruptos. Ela está cercada pela masculinidade tóxica, bruta e corrupta.

Durante o inverno, o vale Kłodzko fica praticamente isolado e inacessível. Nesta estação, a caça é uma prática comum. Dusheiko cuida das residências fechadas de vários vizinhos da região, fazendo constantes rondas de inspeção e eventuais trabalhos de manutenção. 

É durante os devaneios solitários de Dusheiko, que ela compartilha pensamentos com o leitor e demonstra raiva e frustração. Por que o ser humano se acha superior aos animais? Pergunta para si mesmo.

Um dos moradores da região morre sob condições suspeitas. E no decorrer do enredo da história, outras mortes acontecem (ou assassinatos) e uma investigação policial se inicia. Estes aspectos definem a trama principal, o eixo central e o fio condutor da história. O livro não é exatamente um thriller, é sim, acima de tudo, uma crítica inteligente à brutalidade e à ganância. Uma fábula contemporânea de refinado humor ácido. Um romance noir subversivo.

Olga Tokarczuk

Em 2018, a escritora polonesa Olga Tokarczuk foi nomeada para o prêmio Nobel de literatura. Até então pouco conhecida do público em geral, a repercursão da indicação foi obliterada por um caso de escândalo sexual que ocorreu na academia sueca. O caso envolvia uma jurada da premiação e seu marido, acusado, julgado e preso por assédio. A edição daquele ano foi então cancelada e transferida para o ano seguinte, em 2019, quando Olga Tokarczuk venceu o Nobel ao lado do austríaco Peter Handke.

A edição brasileira da editora todavia livros foi lançada em 2019, com 256 páginas e tradução de Olga Bagińska-Shinzato.